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cortar o corpo ao meio

  • Foto do escritor: ciber_ org
    ciber_ org
  • 27 de mai.
  • 2 min de leitura

A decisão mais difícil que eu tomei na vida foi a decisão de cortar meu corpo ao meio.


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"Ta tudo perfeito, pode passar a faca" - disse o médico do ultrassom, enquanto passava aquele papel toalha áspero de banheiro de rodoviária nos seios que ainda estavam presos ao meu corpo.



Passar a faca no corpo como quem passa a faca na manteiga e depois passa no pão.


Cremosidade.

Corpo cremoso, volátil, volúvel, plástico.

corpo _de plástico?



Quando comecei a contar os dias que restavam até a mesa de cirurgia, pensei que fosse levantar da maca com o corpo já novo _brand new. Não imaginei que ficaria 60 dias usando um colete compressor. Não imaginei que retiraria seringas e mais seringas de seroma com uma agulha da espessura de um palito de dente por várias semanas.


Até o corpo se acostumar com a falta, ele se preenche - de seroma, no caso.

O meu corpo precisou se acostumar com o novo contorno da pele. Ou melhor, a pele precisou se acostumar com o novo contorno do corpo. Ou seria, o contorno precisou se acostumar com o novo corpo da pele?


A primeira vez que eu tomei banho depois da cirurgia, eu quase desmaiei no chuveiro.

Uma cicatriz enorme me cortava ao meio. vermelha, pulsante, sensível. os mamilos coroados por pontos pretos. minúsculos e esbugalhados. enxertado.


Essa foto é do meu vigésimo sexto dia de recuperação. Foi o primeiro dia em que eu realmente tomei dimensão do meu novo contorno. Eu saí do banho e me observei pelo espelho do meu quarto, um espelho emoldurado por rastros de um corpo que eu não mais tinha: os pedaços das fitas micropore que eu utilizava como binder, como dispositivo de compressão dos meus seios.


Quando eu comecei a contar os dias, eu comecei a colar os binders usados em torno dos espelhos que eu frequentava, o do quarto e o do banheiro. Ia colando e contando, colando e contando.


E amanhã, 504 dias depois de eu ter me levantado da mesa de cirurgia com o corpo cortado ao meio, esses binders estarão compondo a instalação


“A verdadeira natureza das coisas”, uma das obras que colocam a exposição Botar Fé de pé. Com curadoria de Amanda Carneiro e Raphael Fonseca. [este texto foi originalmente publicado como um post em instagram.com/ciber_org)

 
 
 

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